quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Deficiência visual superada no palco


Associação de Ballet e Artes para Cegos Fernanda Bianchini já formou 300 dançarinos em São Paulo.

Por Beth Matias para Infosurhoy.com 

SÃO PAULO, Brasil – Demi-plié, balancé, deboulés.
Ao ouvirem atentamente os comandos do professor, as bailarinas imediatamente executam os passos.
Ouvem porque não podem ver.
São alunas da Associação de Ballet e Artes para Cegos Fernanda Bianchini, em São Paulo, uma das únicas no país.
As aulas para cegos começaram quando Fernanda tinha 16 anos e era voluntária no Instituto para Cegos Padre Chico, na zona sul da cidade.
Com o tempo, Fernanda desenvolveu uma técnica inédita para ensinar balé aos deficientes visuais: o toque.
A grande dificuldade para quem não tem deficiência é exatamente entender o mundo de quem não vê, diz Fernanda.
“Na minha primeira aula de balé, as meninas chegaram de jeans e camiseta, cabelo solto”, conta. “Elas nunca tinham visto uma bailarina. Ao tentar ensinar o ‘echappé zote’ disse que era como saltar fora e dentro do balde. Uma perguntou: o que é balde?”
Foi então que Fernanda entendeu a necessidade de estudar como o deficiente visual compreende o mundo, entendendo suas limitações, dificuldades e medos.
Nas salas de aula da Associação de Ballet, professores e alunos têm os corpos tocados todo o tempo na aula. Se o ombro cai, um toque do professor faz a bailarina se recompor.
“A postura do deficiente visual é prejudicada porque não há como ver o horizonte e enxergar os movimentos do corpo”, explica Fernanda. “Mas uma bailarina deve sempre olhar para as estrelas, ainda que não as enxergue.”
Fernanda é uma mestra exigente e não permite que integrantes de sua companhia de dança tenham sentimentos de pena em relação aos deficientes visuais.
“Elas são bailarinas profissionais”, diz. “Conhecem todos os passos e têm uma responsabilidade grande em levar o nome da Associação para frente. Quero aplausos pela qualidade e não por pena.”
A técnica, que foi tema da dissertação de mestrado da diretora da entidade, já foi levada para o interior de São Paulo, Rio, Manaus, e Espírito Santo.
Dançar pelo mundo
Em 2007, o projeto desenvolvido pela Associação de Ballet chamou a atenção de Mikhail Baryshnikov, um dos grandes bailarinos internacionais,, quando esteve no Brasil.
As bailarinas com deficiência visual também já realizaram espetáculos no Teatro Municipal de São Paulo, abrindo um espetáculo do norte-americano David Parsons; dançaram com a carioca Ana Botafogo e foram retratadas em um livro sobre o grupo dinamarquês The Royal Danish Ballet.
Mas Fernanda sonha bem mais alto. Ela quer tornar a companhia de balé respeitada e admirada em todo o mundo.
“Este ano pedi para que todos tirassem o passaporte”, conta. “Estamos providenciando vistos. Estou com uma sensação muito boa de [que receberemos] novos convites.”
A Associação se sustenta com patrocínios, doações, apresentações do grupo e palestras da própria Fernanda.

    Geyza Pereira (direita), Aldenir Moreira (centro) e Aldenice Moreira são
     alunas da Associação de Ballet e Artes para Cegos Fernanda Bianchini, em São
     Paulo. (Gui Gomes para Infosurhoy.com)
Geyza Pereira (direita), Aldenir Moreira (centro) e Aldenice Moreira são alunas da Associação de Ballet e Artes para Cegos Fernanda Bianchini, em São Paulo. (Gui Gomes para Infosurhoy.com)
De segunda a sábado, 88 alunos se revezam em aulas gratuitas de balé, sapateado e expressão corporal. A instituição já formou 300 dançarinas com deficiência visual, mas cerca de 10% das vagas são para alunos que não têm qualquer deficiência.
“A maioria das alunas vem de famílias muito carentes”, conta Fernanda. “Todas as quintas e sextas-feiras a escola de balé oferece um almoço que, às vezes, é a única refeição do dia.”
Semanalmente, Fernanda é procurada por grupos de deficientes que querem ter aulas de dança.
“Se tivéssemos mais recursos, poderíamos acolher mais pessoas”, diz.
Muito mais que autonomia
Uma das primeiras alunas de Fernanda foi Marina Alonso Guimarães, hoje com 26 anos.
Ao nascer prematura, a luz da incubadora queimou suas retinas. A mãe, Miriam Guimarães, conta emocionada que ouviu dos médicos a informação que sua filha nunca poderia trocar de roupa sozinha.
Mais de 20 anos depois, Mariana conquistou muito mais do que a habilidade de vestir-se sozinha.
Em 2011, ela se apresentou com o grupo na Broadway Dance, um centro de treinamento mundial para dançarinos, e na Alvin Ailey, ambos em Nova York, nos Estados Unidos.
Mas o balé foi um dos grandes desafios de Marina.
“É preciso conhecer bem o seu corpo, controlar os movimentos, ter noção do espaço”, diz. “Adoro a dança e o que ela me proporciona. Também é um trabalho muito legal, que já me levou para Nova York.”
O trabalho desenvolvido pela Associação, como as apresentações de balé em eventos, ajuda a sensibilizar a sociedade e a diminuir o preconceito, afirma Miriam.
Portas abertas
Amiga de Marina, Gisele Aparecida Camillo, 33, há dois anos realizou um sonho de criança: dedicar-se ao balé.
Moradora na zona oeste da cidade, quatro vezes por semana Gisele enfrenta trem e metrô lotados para frequentar as aulas da Associação Vai sozinha, deixando a mãe e os quatro irmãos mais velhos com o coração na mão em casa.
“Fiz mobilidade e aprendi a chegar aqui”, diz. “Preciso viver minha vida e realizar outro sonho, o de ser bailarina profissional.”
A mobilidade é um treinamento para que o deficiente visual conquiste autonomia na locomoção e independência.
Gisele nasceu com catarata. Quando pequena, tinha a visão do olho esquerdo reduzida, mas agora quase não enxerga mais.
“Meu sonho desde pequena era dançar, procurei muitas escolas, mas as portas se fechavam”, recorda. “Em raras oportunidades, ficavam me testando para saber até que ponto eu conseguiria chegar.”
Hoje Gisele sonha com Fernanda: quer levar o trabalho do grupo para fora do Brasil.
“Queria ser convidada por companhias de balé para poder me apresentar e mostrar o que realmente sei”, diz Gisele.

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