Algo estava diferente na cerimônia daquela noite. Figurões da instituição, que raramente acompanhavam as colações, estavam presentes. Tinha até uma emissora de tevê a postos. Haviam pedido para que Darci chegasse com antecedência, e reservaram um número extra de lugares aos convidados do filho.
Mas nada de anormal ocorreu durante a entrega dos diplomas. Darci e Olivia aplaudiam Junior, o segundo filho do casal, enquanto o já bacharel em Sistema da Informação subia a rampa com sua cadeira de rodas elétrica. Então, um dos diretores da faculdade começou a fazer um discurso em que listava pessoas notáveis, de Aristóteles a Steve Jobs. E Darcy Ribeiro. Ao ouvir o nome do antropólogo brasileiro, Olivia imaginou ter havido uma confusão entre o nome do marido e o seu sobrenome de solteira. Mas porque ele estaria sendo comparado àqueles famosos. O casal se entreolhou. O discurso seguiu com uma fala ressaltando a importância da família. Até, no final, o marido ser de fato citado e chamado ao palco junto com ela. É o último momento da noite que o casal consegue lembrar com clareza. O resto foi marcado por choro e homenagens.
A mudança
Darci percebeu que algo estava diferente depois de um exame de ultrassom. Os operadores da máquina pareciam confusos. Repetiram o procedimento e saíram da sala sem falar nada. Era 1988 e Olivia esperava o segundo filho do casal. No dia do parto, o obstetra antecipou que o filho nasceria com “um probleminha”: teria o “bracinho curto e a perninha curta”. Darci Meneguelo Junior foi uma vítima anacrônica da talidomida, um sedativo que, quando ingerido por gestantes em início da gravidez, tende a impedir a formação normal dos membros. A anomalia, conhecida como focomelia, foi comum nos anos 1950, quando os efeitos colaterais do medicamento ainda não tinham sido identificados. O caso é considerado um dos maiores erros da história da medicina.
Olivia suspeita de que a talidomida estava presente na fórmula de um remédio para emagrecer que ela tomou até a segunda semana de gravidez. Junior nasceu com pezinhos colados ao quadril e sem os dois braços. Um único dedo funcional é unido ao ombro direito. Fora isso, foi um bebê saudável. Na maternidade, era a criança que mais mamava e menos chorava. “O garoto é forte”, disse uma enfermeira. Assim como todo bebê, foi carregado no colo. Depois, começou a engatinhar de bruços e, mais tarde, caminhar arrastando o quadril no chão. A imagem revelava uma verdade biológica: braços e pernas são – tão e somente – ferramentas a serviço da vida.
Rumo à inclusão
Na terceira série fundamental, Darci Junior saiu da escola especial e foi inserido no ensino regular. Escrevia em um computador instalado na sala, usando o dedo do ombro direito e uma vareta na boca. Desenvolveu então o gosto por informática, que o levou ao curso de Artes Visuais com Ênfase em Computação Gráfica. Desistiu ao entrar nos semestres dedicados a trabalhos em madeira e argila. Mudou para Sistemas de Informação e recomeçou a graduação a partir do primeiro período.
Ainda no ensino fundamental, Junior havia feito amizade com um colega de sala cujo pai era deficiente físico. Este homem o apresentou ao futebol para cadeirantes, que acabou se tornando sua segunda atividade durante o ensino superior. No primeiro treino, amarraram uma banheira de bebê na frente da cadeira para a bola não entrar embaixo do assento e derrubá-lo. Darci pai achou que poderia melhorar o sistema, e construiu uma grade semelhante a dos capacetes de futebol americano. Usou tubos ocos para não pesar a cadeira e atrapalhar o rendimento do filho.
Vida comum
Darci pai percebeu que algo estava diferente com suas pernas, que passaram a doer cada vez mais. Descobriu um aneurisma na aorta, largo a ponto de quase causar uma isquemia. Foi operado. Dois meses depois, foi a vez de Olivia sofrer uma operação, para retirada de pedras na vesícula. Junior chegou a ficar mais de um mês sem frequentar as aulas, mas a oferta de uma bolsa integral pela instituição garantiu que ele concluísse o curso.
Passados seis meses da formatura, os Meneguelo vivem como a mais normal das famílias. Entre uma partida de futebol e outra, o filho recém- formado se debruça sobre o desafio de entrar no mercado de trabalho. Pensa em fazer pós-graduação. O pai e a mãe, com 64 e 56 anos, vivem algumas angústias típicas da meia idade. Temem pelo dia em que não terão forças para proteger a prole. E Darci acredita que a educação será o motor da mudança para o filho caçula. “As pessoas podem tirar tudo dele, mas o aprendizado é algo que fica para sempre.”