segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Abre as asas sobre nós, liberdade!



Ter uma deficiência significa conviver com a necessidade diária de superação de desafios, especialmente em nosso país, que despertou para a inclusão social há relativamente pouco tempo – e segue a passos lentos.


No cotidiano, a pessoa com deficiência precisa estar sempre equipada para viagem ou para exercer os esportes mais radicais: terá de navegar mares bravios, saltar de parapente sem ter sido treinada para isso, andar na corda bamba, escalar montes de preconceitos, pular obstáculos, correr maratonas, tatear no escuro, ouvir sem escutar. Viver uma deficiência não é para qualquer um, eu garanto. Não é que sejamos melhores que ninguém, mas deparar com uma limitação e seguir vivendo com coragem e alegria só é possível quando cada um acessa o que traz de melhor dentro de si, aduba o que encontrou e cuida do canteiro com zelo de jardineiro experiente.



Mas a grande meta, no final das contas, costuma ter o nome de autonomia ou liberdade. Todo indivíduo sonha com ela – mas para a pessoa com deficiência ela é fundamental. Contamos com a solidariedade, a gentileza e o carinho da família, dos amigos e até mesmo de desconhecidos, porém não podemos ficar dependentes disso. Nem sempre as pessoas estão disponíveis, nem sempre presentes no momento em que precisamos ou desejamos, nem sempre concordamem nos ajudar naquilo que é importante para nós. Às vezes negam auxílio, às vezes manipulam, fazem pirraça… Coisas de seres humanos. É preciso admitir que não é fácil estar disponível ao outro full time.


Além de tudo, já parou para pensar que é muito cansativo ter necessidade de recorrer ao outro o tempo todo? Me traz um copo d’água, por favor; pega aquele livro pra mim, me ajuda a tomar banho, a ir ao banheiro? Daqui a pouco? Não, agora! É agora que preciso! Ah, agora você não pode…



Com uma cidade acessível, inclusiva, a dependência progressivamente cede lugar à autonomia em inúmeras situações. Que tal se eu, como cadeirante, pudesse exercer meu direito constitucional de ir e vir sem ter de andar o tempo todo acompanhada? Mas as calçadas não me oferecem condições de circular sozinha. Seria tão bom se eu pudesse sair para almoçar sem depender de ninguém…


E se o cadeirante pudesse usar o banheiro toda vez que tivesse necessidade? E se uma pessoa cega pudesse entrar e sair de seu prédio sem precisar de companhia (a não ser que ela tivesse o desejo de estar acompanhada, é claro), caso o painel do elevador estivesse adequado, com placas em braile? E se os filmes e novelas tivessem legendas para a população surda? Será pedir muito? Tudo isso proporciona autonomia, e são coisas tão corriqueiras…



Não podemos viver à mercê das instituições, das pessoas, das autoridades, dos especialistas. Todos são importantes e necessários, mas as decisões que nos afetam precisam ter a nossa participação ativa. Precisamos de autonomia, de condições de conquistar metas que nos são caras (no sentido de importantes). Dispensamos paternalismo, concessões; somente queremos que respeitem nossos direitos, porque precisamos exercer nossa cidadania e cumprir nossos deveres.


Todas essas reflexões me vieram à mente agora, ao ler o seguinte texto de Rubem Alves. Porque, diante do inesperado que é cada manhã de uma pessoa com deficiência (nunca sabemos com certeza quais novos desafios vão se fazer presentes), o medo surge, mas ele não pode nos impedir de voar.


“Somos assim: sonhamos o voo, mas tememos a altura. Para voar é preciso ter coragem para enfrentar o terror do vazio. Porque é só no vazio que o voo acontece. O vazio é o espaço da liberdade, a ausência de certezas. Mas é isso o que tememos: o não ter certezas. Por isso trocamos o voo por gaiolas. As gaiolas são o lugar onde as certezas moram.


É um engano pensar que os homens seriam livres se pudessem, que eles não são livres porque um estranho os engaiolou, que eles voariam se as portas estivessem abertas. A verdade é oposto. Não há carcereiros. Os homens preferem as gaiolas aos voos. São eles mesmos que constroem as gaiolas em que se aprisionam…”



De fato, temos medos e inseguranças: pra que dizer que não? Apesar disso, muitas de nossas cadeiras ganharão asas e voarão. É que a coragem se constrói na travessia, justamente porque o coração não abre mão do sonho da liberdade.


Muitos pés de pessoas cegas atravessarão pontes, abrindo mão do conformismo e da insegurança. Pessoas com paralisia cerebral ousarão sair de suas casas para mostrar talentos e buscar a realização de seus desejos. Pessoas surdas buscarão interagir, cantar, dançar, guiar automóveis. E por aí vai. Progressivamente, esse movimento ampliará a cidadania desses indivíduos e tornará o espaço físico mais inclusivo. As barreiras atitudinais também cederão.


Tenho diversos amigos com deficiência, grandes amigos, pessoas muito queridas. Todos são referência, para mim, da força descomunal que surge (apesar) da fragilidade orgânica. Quem olha o corpo não vê o tamanho do sonho. E não vê que a espécie humana é capaz de realizar o inimaginável…



Você ainda está dentro da gaiola, com medo de bater as asas? Não duvide de que o voo está no DNA do pássaro. E não tenha vergonha de pedir ajuda para voar! Todos precisamos de auxílio eventualmente, até que brote a confiança nos próprios potenciais.


Vai bater a asa, vai…






Este post é uma homenagem aos amigos com (d)eficiência; não citarei os nomes por puro medo de esquecer algum! Minha memória é bastante deficiente…


Ah! Já notou que este blog é cheio de imagens de pássaros?




Gostaria de atualizar este texto divulgando um link para a crônica do Jairo Marques que li ontem, 30/9.
Jairo é cadeirante, repórter da Folha. Esteve em Londres durante as Paralimpíadas, em missão muito especial. Ele conta o que é viver 15 dias numa cidade inclusiva e o choque ao voltar para o Brasil, um país que faz muito pouco por seus filhos com deficiência.
Clique aqui para ler: Quinze dias no mundo ideal





http://cadeiravoadora.blogspot.com.br/

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