Falar sobre uma paixão pode ser extremamente simples e ao mesmo tempo totalmente complexo. A paixão, quando não pode ser alimentada, faz sofrer; traz uma sensação de vazio... e tende a terminar.
Nestas breves palavras, pretendo falar sobre uma paixão que me acompanha desde a infância e ao contrário das paixões arrebatadoras, que da mesma forma que vem, desaparecem no minuto ou no mês seguinte, essa paixão nunca diminuiu em mim.Como toda criança, minha infância foi recheada de histórias contadas,principalmente pelo meu avô: uma pessoa calada mas que depois de muita insistência dos netos, deixava fluir a criatividade e nos contava belíssimas aventuras inventadas na hora, ou já pensadas para aqueles momentos. Era muito bom compartilhar aqueles minutos preciosos e tenho plena certeza de que meu avô, na sua simplicidade tão rica em sabedoria, incutiu em mim o amor que nunca mais foi embora: o amor pelos livros.
Como nasci praticamente cega, infelizmente os livros eram artigos inexistentes no meu dia-a-dia. Minha cidade, com seus pouco mais de 4 mil habitantes, jamais poderia oferecer livros em Braille. Na verdade, essa palavrinha mágica nem era conhecida do povo de lá.
Quando comecei a frequentar a escola, o gosto pela leitura aumentava acada dia e por consequência, minha frustração por não ter o que ler. A sede pelos pontinhos do Braille era tão grande, que eu lia absolutamente tudo que parava na minha mão. O conteúdo não importava; bastava ter o que ler com independência. Eu me contentava.
às vezes minha irmã lia para mim.Aqueles momentos ficaram gravados na minha memória para sempre. A gente se sentava na cama, uma ao lado da outra e sem saber, ela me deu uma das maiores alegrias. Era um grande ato de amor ler para mim, especialmente porque naqueles momentos, nós nos conectávamos não só em relação à história dentro do livro, mas havia uma conexão maior: a conexão de alma. E não estou exagerando: quem ama leitura vai entender o que estou dizendo.
Infelizmente o tempo da minha irmã era menor do que minha vontade voraz de ler e eu sempre queria mais e mais. Cada vez que ia à biblioteca da escola e me deparava com aquele acervo imenso, aumentava minha frustração por não ter acesso a tantas maravilhas contidas naquelas páginas. Sonhava em um dia poder ler uma revista, um livro qualquer que eu pudesse escolher de forma independente e ler pelo tempo que eu quisesse.
Jamais vou esquecer o dia em que, em um simples disquete, um objeto tão pequeno, eu levaria para a casa uma quantidade até então pra mim impensável de livros.
Esses livros chegaram até a mim por intermédio de amigos cegos; um grupo de pessoas que se uniu em uma lista de compartilhamento, e começou a repassar seus trabalhos. Essas pessoas adquiriam um computador e um scanner, compravam os livros e conseguiam digitalizar as páginas impressas no papel, e passar as imagens para o computador. A partir daí, quem tinha um PC em casa começou a ter acesso, de forma totalmente independente, aos livros que desejasse. Seus computadores “liam” para elas.
Fui pra casa com meu disquete precioso e, pela primeira vez, me deparei com a indecisão: qual livro ler??? Perante tantas possibilidades, eu maravilhada com aquela novidade, queria ler tudo e sabia que seria impossível devido à quantidade. Passar pela situação inversa a que estava acostumada foi no mínimo inusitado e por fim, me decidi por "A Viuvinha", de José de Alencar. Li de cabo a rabo, sem nenhuma pausa meu primeiro livro digital. A sensação de saber que o computador “falaria” pelo tempo que eu quisesse,me dando autonomia e independência, me encantou. Daquele dia em diante, minha biblioteca só aumentava e meu fascínio pelos livros também. Sabia que dependia de outras pessoas para digitalizar; eu não tinha um scanner e sinceramente: não me animava com a possibilidade de adquirir um, pois queria mesmo ler. Egoísmo meu? Claro que sim. Não somos perfeitos.
Com os avanços tecnológicos, veio a necessidade de um formato novo de leitura para todos. Não era tão prático "carregar" o livro físico. Quem era aficionado pelas "tralhas" tecnológicas, queria poder ler, também em seus tablets, computadores, celulares...
Visando um nixo inovador no mercado, as editoras promoveram um serviço incrível, que beneficiou e continua beneficiando as pessoas com deficiência visual. Cada ebook disponibilizado para atingir o público fissurado pelas telinhas de seus aparelhos, chegava também ao público cego.
Ainda é bastante escasso os lançamentos de livros em formato digital. Porém, felizmente a procura pelos e-books tem aumentado e com isso, nós, cegos, temos cada vez mais possibilidade de entrarmos no site das lojas, fazermos nossa escolha do título desejado, comprar o livro e em minutos, termos o objeto dos sonhos nas nossas máquinas.
Dirigir-se à uma livraria, adquirir uma obra e ter acesso ao seu conteúdo, ainda que virtualmente, é, sem dúvida, uma realidade ainda inédita para as pessoas cegas, mas que promove uma igualdade já há muito tempo almejada. Nota-se, porém, que esse caminho perpassa por obstáculos que necessitam ser transpostos, sob pena de continuar uma realidade que compromete, de maneira lesiva, o acesso aos livros pelas pessoas cegas e de baixa visão.
Falo da falta de acessibilidade na compra, download e leitura das obras. As editoras e livrarias que já trabalham com o formato ePUB, tornam acessível o terceiro aspecto por mim apontado: A leitura, fase mais importante do processo. A compra e download das obras, porém, contemplam vários pontos de inacessibilidade que precisam ser sanados.
Além das obras em formato digital, que já oferecem uma independência não plena, claro, mas razoável no que diz respeito à leitura das pessoas com deficiência visual, temos ainda os audiolivros. Esse formato de obras vem sendo bastante explorado pelas editoras e, além disso, algumas instituições de e para pessoas cegas produzem livros em áudio, a exemplo da Fundação DorinaNowill para Cegos, a maior produtora de audiolivros do país, com material didático e acadêmico, de literatura, técnico-científico, etc.
Posso dizer que o contexto aqui descrito evoluiu muito nos últimos anos e principalmente com o auxílio dos meios digitais. Mas ainda precisamos pensar naquelas pessoas que não tem acesso às tecnologias e, sobretudo, melhorar a acessibilidade dos meios disponíveis.
Hoje já não consigo passar sequer uma semana sem um bom livro para ler. Sou imensamente grata aos recursos físicos e tecnológicos disponíveis, mas também sou consciente do meu papel enquanto cidadã que deve participar da construção de um mundo mais inclusivo e acessível.
http://maragabrilli.com.br/federal/noticias/2313-nossas-leituras-do-braille-aos-ebooks
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