sábado, 2 de fevereiro de 2013

A VIAGEM/Crítica – vanguarda entre ideologias vencidas

AQUI NO FUTURO ANALISANDO A TEMPORALIDADE,O VANGUARDISMO DA SOCIEDADE ENQUANTO CONSCIÊNCIA FILOSÓFICA ENTRE MAIS CONJECTURAS,LEIA


Novo longa dos irmãos Wachowski com parceria de Tom Tykwer (baseado na obra literária de David Mitchell) tem aceitação inversamente proporcional à sua genialidade. Digo e repito, esse é um filme de duas opções: Inteligível ou Ininteligível. Não há meio termo. Felizmente, para os ousados – aqueles que veem total sentido no caos – A Viagem ganha força a cada minuto de projeção. Esse é um raro caso de filme com discurso próprio, um exemplo a ser seguido, uma fuga à fórmula
Os clones Somni em A VIAGEM
A viagem começa com o quadro fechado no rosto de um Tom Hanks velho, barbado, com resquícios de uma pele marcada – uma lembrança de quem fora um dia –. Ali, ele discursa à sua plateia, o espectador que, desde o começo compreende (ou deveria compreender) que está prestes a embarcar em uma narrativa metalinguística que remete à própria imaginação do fazer discursivo.
A verdade e o paradigma da pluralidade
Em certo momento da narrativa, Sonmi-450 (interpretada pela maravilhosa Doona Bae) corrige a indagação do arquivista vivido por James d’Arcy. “Estamos interessados na sua versão da verdade”, provoca ele, “A verdade é singular, as versões da verdade são uma mentira”, afirma ela categoricamente. Essa alcunha, por mais fugaz que seja no contexto em que é apresentada, é reveladora quando se busca entender a (ou as) conexão (ões) entre os seis segmentos apresentados na narrativa.
A título de cronologia, temos uma primeira narrativa ambientada no século XIX protagonizada por Jim Sturgess, que vive o advogado Adam Ewing, um jovem prestes a fechar uma negociação milionária envolvendo a compra de escravos; Tom Hanks (o médico Henry Goose) e David Gyasi (o escravo Autua). A segunda é ambientada na Inglaterra, no começo do século XX, em 1930, protagonizada por Ben Whishaw, que vive o músico prodígio Robert Frobisher (compositor do sexteto Cloud Atlas, que dá título ao filme); Jim Broadbent (Vyvian Ars, o célebre compositor) e James d’Arcy (Rufus Sixmith, o amante de Frobinsher). O terceiro segmento se passa na década de setenta e é protagonizada por Halle Berry, que vive a jornalista Luisa Rey; James d’Arcy, que reprisa o personagem Rufus Sixmith agora idoso e um renomado físico, Isaach Sachs ( Tom Hanks); Hugh Grant, que dá vida ao execrável lobista Denholme Cavendish e Hugo Weaving que (vilão de todos os segmentos, diga-se de pasagem) vive um assassino de aluguel.
O quarto arco da narrativa se passa em 2012 e é protagonizado por Jim Broadbent, que interpreta o editor e escritor Timothy Cavendish; Hugh Grant, que reprisa o papel de Denholme Cavendish; Tom Hanks (o escritor fracassado Dermont Hoggins); Susan Sarandon (Ursula, o interesse amoroso da juventude de Timothy) e Hugo Weaving, que vive a enfermeira Noakes. O quinto segmento é ambientado em um distante futuro distópico em Nova Seul, na Coréia do Sul e protagonizado por Doona Bae, que interpreta a garçonete de laboratório Sonmi-451; Jim Sturgess, que vive o líder da resistência Hae-Joo Chang e James d’Arcy que interpreta o Arquivista.
No sexto e último segmento, ambientado em um futuro pós-apocalíptico, quando a modernidade trouxe fim à civilização moderna (irônico, não?), temos Tom Hanks como Zachry, o líder de um vilarejo primitivo; Halle Berry como a pesquisadora forasteira Meronym e Hugo Weaving como o capeta que serve de bussola moral para Zachry.
Uma vez delimitado os limites dos segmentos e identificando os personagens apresentados em cada um deles, comecemos a desdobrar os temas abordados no filme.
David Gyasi e Jim Sturgess em A VIAGEM
Ordem natural e cultural
Deus criou o mundo, mas não deixou claro o que permitiu que fosse modificado e o que deveria permanecer intocável. Essa discussão surge em outro dos momentos minimalistas e determinantes do filme. Dentro do contexto da escravatura, o tema se expande e abrange todos os outros segmentos propostos na narrativa. Afinal de contas, é natural que o branco seja superior ao negro? A ordem das relações de superioridade seguem as leis da natureza ou da cultura?
A beleza discursiva de A viagem está aí, na interseção temática de seus segmentos e na reflexão que eles promovem. Tratemos dos personagens de Jim Sturgess. É clara a rima narrativa entre Adam Ewing e Hae-Joo. Ambos estão envolvidos em relações verticais com os personagens os quais tenta proteger. Ambos questionam a tal ordem natural proposta pelos ocupantes do vértice da pirâmide de castas. Ambos têm papéis importantíssimos no curso de mudanças históricas na humanidade.
A problemática da verticalidade cultural dos homens, da ordem do mais forte, perpassa do século XIX até o pós-apocalipse filmados no longa. Se a escravatura é o auge do execrável no quesito relações humanas do primeiro segmento, a tendência é revelar o que o homem tem de mais podre durante as épocas retratadas ao longo da projeção. Não é a toa que no último arco, o homem moderno implode e volta às raízes da vida primitiva, fazendo o caminho inverso do ciclo evolutivo. O mais forte se alimenta com a carne do mais fraco, diz o demônio Old Georgie a Zachry.
No pós-apocalipse, a ordem natural é literal e visceral. As tribos canibais se alimentam dos mais fracos (aqueles que não conseguem se salvar), igualmente aos seres produzidos e programados em laboratórios na futurista Nova Seul se alimentam de si mesmo. Aliás, é necessário comentar a semelhança temática de Nova Seul com o Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley. A discussão existencial de liberdade e privação, viver em uma verdadeira matrix (sem trocadilho), sociedade regulamentada por castas e nascimento x morte está representada nos dois universos. Sonmi-451 é, quase literalmente, o Bernard Marx de Huxley. Ela é o experimento que deu errado, a marionete que passou a se questionar, a profeta inesperada, enfim, o próprio retrato da revolução que o homem comum pode causar na sociedade.
Ainda sobre a ordem vertical nas relações humanas, ela é facilmente identificada também pela relação entre Frobinsher e Ars; pela exclusão do homossexual e a construção da “reputação” no início do século XX; pela pretensa superioridade dos criadores da bomba sobre os cidadãos comuns (superioridade do capital); pela pretensa superioridade de Denholme sobre Timothy e dos mais novos sobre os idosos; enfim, como já comentado, dos puro sangues de Nova Seul sobre os “ípsilon” vassalos.
Ideologias vencidas temporariamente, imortalidade do discurso e vanguarda
Outra beleza em A viagem está em seu otimismo no homem, o sopro de esperança que, no fim das contas, bate no rosto. A onipresença de ideologias humanitárias é um traço forte na narrativa empregada pelos Wachowski, e, não importa o tempo que leve, ao longo das gerações, essas ideologias acabam vingando. Veja a escravatura. Veja o homossexualismo e a sociedade de reputação. Veja o atomismo. Veja a velhice. Veja as castas modernas. Enfim.
Em um determinado momento na conversa com o arquivista, Sonmi-451 comenta sobre o seu plano de “mudar o mundo com a verdade”. Você já sabia que seria capturada e que o plano falharia, não é?, diz o arquivista. Sim, replica ela. Como você supôs que as pessoas acreditariam no que disse? replica o arquivista. Alguém já acredita, finaliza Sonmi-451 no diálogo mais intrigante e representativo do filme. Há uma certa ingenuidade, no otimismo dos Wachowski, entretanto, no final das contas, o que realmente move a vida e a obra em questão senão a esperança?  
No cartaz do filme, está grifada a alcunha tudo está conectado. Uma verdadeira obra de arte, independente de seu segmento, tem o poder de fazer o verdadeiro apreciador refletir, tirar suas próprias interpretações sem invalidar a interpretação do artista. Me parece que esse fenômeno, o da reflexão plural, acontece em A Viagem. Repito a alcunha grifada no cartaz, tudo está conectado. Não seria essa conexão discursiva entre os temas trabalhados nas muitas narrativas incluídas no filme? Seria ela transcendental? Parafraseando Sonmi-451 novamente, Do útero ao túmulo, estamos todos ligados de uma forma ou outra. Somos ligados uns aos outros no presente, passado e futuro, a cada bondade e crime, nós damos vida ao futuro. Será que as ligações concretas entre os personagens das diferentes gerações é obra do destino ou do acaso? A verdade, como já diria Tom Hanks, é singular, suas versões são mentiras. Fiquem com suas interpretações, eu já tenho a minha. Sonmi deu a dica: damos vida ao futuro.
A Viagem é definitivamente um filme a frente de seu tempo. Não me restam dúvidas de que seu reconhecimento de público e crítica vingará como uma das suas ideologias de vanguarda… Retomando o diálogo de Sonmi com o Arquivista, pelo menos alguém já acredita nisso.
Observação: A técnica visual do filme é incrível, dos efeitos visuais à praticidade da maquiagem. Elogiar a técnica de direção dos Wachowski é redundância. 
Assista ao trailer de A viagem
http://blogs.diariodonordeste.com.br/blogdecinema/criticas-de-filmes/a-viagemcritica-vanguarda-entre-ideologias-vencidas/

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