quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

A reinvenção da felicidade


Ivonaldo Alexandre/Gazeta do Povo / Os “Darcis” e Olívia: desafios e superação na mesma medida

Como um pai engenhoso e uma mãe dedicada ajudam seu filho com deficiência a seguir o caminho da inclusão


GAZETA DO POVO

Darci Meneguelo jamais aprendeu a dar nó em gravata. Sua esposa Olivia, então, nem se fala. Como estava apressado para chegar cedo à formatura do filho, este caminhoneiro aposentado jogou a indumentária no banco de trás do carro. Ao chegar ao auditório da instituição pela qual Darci Junior colaria grau naquela noite, em Curitiba, trazia a gravata estendida no braço. Uma das professoras se assustou com o suposto desleixo e rapidamente atou-a ao pescoço do homem. “Pronto, seu Darci”, disse ela. “Agora não saiam daqui de perto”.

Algo estava diferente na cerimônia daquela noite. Figurões da instituição, que raramente acompanhavam as colações, estavam presentes. Tinha até uma emissora de tevê a postos. Haviam pedido para que Darci chegasse com antecedência, e reservaram um número extra de lugares aos convidados do filho.
Invenção
Os impulsos criativos de um caminhoneiro chamado Darci
Darci pai nem sequer tinha ouvido falar em cadeiras de roda motorizadas ao bolar o carrinho com o qual o filho iria correr, brincar e até jogar bola. O conceito da invenção, no entanto, é instintivamente aproximado. O caminhoneiro pegou um tico-tico de plástico, instalou um motorzinho de limpador de parabrisa ligado a uma bateria comum de automóvel, conectou à roda traseira com uma correia de bicicleta, ligou a uma tomada de luz e colocou o filho de 5 anos em cima. Junior acionava a chave com o ombro e dirigia com a barriga. Divertia-se enquanto durava a bateria (três dias, em média), e esperava ansioso ela voltar recarregada da oficina.
A habilidade com invenções foi desenvolvida desde a infância de Darci pai. Aos 13 anos, precisava consertar o freio de sua bicicleta, mas não tinha dinheiro para levá-la à oficina. Desmontou o equipamento até achar o problema, e gastou apenas com a peça de reposição. Seu pai, um agricultor do Norte do Paraná, disse a ele que cultivasse o dom. As dificuldades da vida o impediram de cursar uma faculdade de Engenharia Mecânica, porém aprendeu muito com os caminhões velhos que os patrões lhe disponibilizavam, e que de vez em quando paravam no meio do caminho. A casa da família Meneguelo é cheia de protótipos de automação – de varal giratório a descascador de coco. Os amigos lhe deram o apelido de professor Pardal, porém seu olhar lembra o de outro gênio, este da vida real: são olhos miúdos, que parecem sorrir o tempo todo, sobre uma bolsa palpebral enrugada e um basto bigode branco (preste bem atenção na foto e você vai descobrir quem é).
Mas nada de anormal ocorreu durante a entrega dos diplomas. Darci e Olivia aplaudiam Junior, o segundo filho do casal, enquanto o já bacharel em Sistema da Informação subia a rampa com sua cadeira de rodas elétrica. Então, um dos diretores da faculdade começou a fazer um discurso em que listava pessoas notáveis, de Aristóteles a Steve Jobs. E Darcy Ribeiro. Ao ouvir o nome do antropólogo brasileiro, Olivia imaginou ter havido uma confusão entre o nome do marido e o seu sobrenome de solteira. Mas porque ele estaria sendo comparado àqueles famosos. O casal se entreolhou. O discurso seguiu com uma fala ressaltando a importância da família. Até, no final, o marido ser de fato citado e chamado ao palco junto com ela. É o último momento da noite que o casal consegue lembrar com clareza. O resto foi marcado por choro e homenagens.
A mudança
Darci percebeu que algo estava diferente depois de um exame de ultrassom. Os operadores da máquina pareciam confusos. Repetiram o procedimento e saíram da sala sem falar nada. Era 1988 e Olivia esperava o segundo filho do casal. No dia do parto, o obstetra antecipou que o filho nasceria com “um probleminha”: teria o “bracinho curto e a perninha curta”. Darci Meneguelo Junior foi uma vítima anacrônica da talidomida, um sedativo que, quando ingerido por gestantes em início da gravidez, tende a impedir a formação normal dos membros. A anomalia, conhecida como focomelia, foi comum nos anos 1950, quando os efeitos colaterais do medicamento ainda não tinham sido identificados. O caso é considerado um dos maiores erros da história da medicina.
Olivia suspeita de que a talidomida estava presente na fórmula de um remédio para emagrecer que ela tomou até a segunda semana de gravidez. Junior nasceu com pezinhos colados ao quadril e sem os dois braços. Um único dedo funcional é unido ao ombro direito. Fora isso, foi um bebê saudável. Na maternidade, era a criança que mais mamava e menos chorava. “O garoto é forte”, disse uma enfermeira. Assim como todo bebê, foi carregado no colo. Depois, começou a engatinhar de bruços e, mais tarde, caminhar arrastando o quadril no chão. A imagem revelava uma verdade biológica: braços e pernas são – tão e somente – ferramentas a serviço da vida.
Rumo à inclusão
Na terceira série fundamental, Darci Junior saiu da escola especial e foi inserido no ensino regular. Escrevia em um computador instalado na sala, usando o dedo do ombro direito e uma vareta na boca. Desenvolveu então o gosto por informática, que o levou ao curso de Artes Visuais com Ênfase em Computação Gráfica. Desistiu ao entrar nos semestres dedicados a trabalhos em madeira e argila. Mudou para Sistemas de Informação e recomeçou a graduação a partir do primeiro período.
Ainda no ensino fundamental, Junior havia feito amizade com um colega de sala cujo pai era deficiente físico. Este homem o apresentou ao futebol para cadeirantes, que acabou se tornando sua segunda atividade durante o ensino superior. No primeiro treino, amarraram uma banheira de bebê na frente da cadeira para a bola não entrar embaixo do assento e derrubá-lo. Darci pai achou que poderia melhorar o sistema, e construiu uma grade semelhante a dos capacetes de futebol americano. Usou tubos ocos para não pesar a cadeira e atrapalhar o rendimento do filho.
Vida comum
Darci pai percebeu que algo estava diferente com suas pernas, que passaram a doer cada vez mais. Descobriu um aneurisma na aorta, largo a ponto de quase causar uma isquemia. Foi operado. Dois meses depois, foi a vez de Olivia sofrer uma operação, para retirada de pedras na vesícula. Junior chegou a ficar mais de um mês sem frequentar as aulas, mas a oferta de uma bolsa integral pela instituição garantiu que ele concluísse o curso.
Passados seis meses da formatura, os Meneguelo vivem como a mais normal das famílias. Entre uma partida de futebol e outra, o filho recém- formado se debruça sobre o desafio de entrar no mercado de trabalho. Pensa em fazer pós-graduação. O pai e a mãe, com 64 e 56 anos, vivem algumas angústias típicas da meia idade. Temem pelo dia em que não terão forças para proteger a prole. E Darci acredita que a educação será o motor da mudança para o filho caçula. “As pessoas podem tirar tudo dele, mas o aprendizado é algo que fica para sempre.”

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