Sumário: 01. Introdução. 02. Proteção legal do portador de deficiência. 03. O Ministério Público e a PPD. 04. A atuação do Promotor de Justiça na defesa do portador de deficiência. 05. Considerações finais.
01. INTRODUÇÃO.
A história da humanidade revela, desde os tempos mais remotos, a existência de pessoas portadoras de deficiência, com relatos sobre suas dificuldades na vida cotidiana. A Bíblia, dá vários exemplos de tais situações, como a deficiência da fala de Moisés (Êxodo, 4:10) ou da visão e física do apóstolo Paulo (Coríntios, cap. 12:7). Na era clássica, esclarece Aurea Ribeiro O cidadão portador de deficiência. In: ROBERT, Cinthia (org.). O Direito do Deficiente. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, pág. 81., "Homero – aquele a quem Platão denominou na República, o maior de todos os poetas - deixou lavrado em seus versos, a tarefa estratégica legada ao deus Hefesto, que era coxo, ou seja, portador de deficiência física, o mesmo ocorrendo com Platão, que tinha uma desproporcionalidade física de seus ombros e fontes. A estas pessoas somam-se inúmeras outras, como Ludwig Van Beethoven, ou o Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, que assim ficou conhecido devido a deficiência que portava.
A trajetória histórica, revela que a pessoa portadora de deficiência sempre foi marginalizada, vivendo num verdadeiro apartheid social, sendo vítima da própria deficiência e da exclusão proporcionada pela sociedade, dita perfeita ou de homens fictícios.
Esta situação é menos gritante nos países que experimentaram os horrores de uma guerra, com a presença de mutilados e portanto deficientes, acarretando maior sensibilização e mobilização da sociedade para atender aos seus direitos, já que assim ficaram para defender a pátria.
Nos países que não passaram por esta experiência, como o Brasil, o deficiente ainda é ignorado, sendo certo que a evolução da sociedade não foi suficiente para afastar a exclusão e as dificuldades experimentadas, sendo necessário estabelecer por meio de lei, regras que pudessem buscar a igualização entre as pessoas, portadoras de deficiência ou não.
Estas normas, por si só, também não garantiram a efetividade da igualdade, diante da nossa cultura de sociedade perfeita. Assim, os portadores de deficiência continuaram marginalizados e excluídos do contexto social. Foi necessário estabelecer mecanismos assecuratórios para garantir a cidadania da pessoa portadora de deficiência, com a previsão de ações judiciais e instituição que assumisse a defesa deste segmento da sociedade.
Neste contexto, surge o Ministério Público como instituição designada para fazer valer os interesses dos portadores de deficiência, visando garantir a sua cidadania, inclusão social e dignidade.
As leis elaboradas passaram a dar respaldo a atuação Ministerial, possibilitando o início de uma verdadeira revolução para retirar o portador de deficiência da condição de marginalizado e excluído, elevando-o à cidadão com dignidade e respeito.
02. PROTEÇÃO LEGAL DO PORTADOR DE DEFICIÊNCIA.
São inúmeras as leis que buscam regulamentar os direitos da pessoa portadora de deficiência. Tais leis não se apresentam como um todo harmonioso, dificultando a sua aplicação, uma vez que regulamentam a matéria leis esparsas, na esfera federal, estadual e municipal, além de decretos regulamentares, portarias e resoluções específicas para cada tipo de deficiência.
O certo é que, dentro deste complexo de proteção legal, merece análise o contido nas Constituições, bem como nas leis n.º 7.853 de 24 de outubro de 1989, Decreto n.º 3.298 de 20 de dezembro de 1999 e a Lei n.º 10.098 de 19 de dezembro de 2000, que de forma mais efetiva tratam dos direitos dos portadores de deficiência e sua inclusão.
Quanto as Constituições, esclarece o Prof. Luiz Alberto David Araújo Proteção constitucional das pessoas portadoras de deficiência. Brasília: Coordenadoria Nacional para Integração da pessoa portadora de deficiência, 1994, pág. 66-73., que somente com a Emenda n.º 01 à Constituição de 1967, é que surgiu uma vaga referência a pessoa portadora de deficiência, quando tratou da "educação dos excepcionais".
Posteriormente, com a Emenda n.º 12, de 17 de outubro de 1978 à Constituição de 1967, novo avanço ocorreu para os portadores de deficiência, uma vez que foi estabelecido que:
Artigo único: É assegurado aos deficientes a melhoria de sua condição social e econômica especialmente mediante:
I - educação especial e gratuita;
II – assistência, reabilitação e reinserção na vida econômica e social do Pais;
III – proibição de discriminação, inclusive quanto à admissão ao trabalho ou ao serviço público e a salários;
IV – possibilidade de acesso a edifícios e logradouros públicos.
A partir daí, a inovação mais significativa ocorreu com a atual Constituição de 1988. Ela foi pródiga ao tratar da pessoa portadora de deficiência, estabelecendo não somente a regra geral relativa ao princípio da igualdade (art. 5º, "caput"), mas também:
a) a competência comum da União, Estado, Distrito Federal e Município para cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência (art. 23, II).
b) a competência concorrente para legislar visando a proteção e integração do portador de deficiência (art. 24, XIV).
c) a proteção ao trabalho, proibindo qualquer discriminação no tocante ao salário e admissão do portador de deficiência (art. 7º, XXXI) e a reserva de vagas para cargos públicos (art. 37, VIII);
d) a assistência social – habilitação, reabilitação e benefício previdenciário (art. 203, IV e V),
e) a educação – atendimento especializado, prefencialmente na rede regular de ensino (art. 208, III),
f) a eliminação das barreiras arquitetônicas, adaptação de logradouros públicos, edifícios, veículos de transportes coletivos. (art. 227, II, parágrafo 2º).
g) preocupação com a criança e adolescente portadores de deficiência, com criação de programas de prevenção e atendimento especializado, além de treinamento para o trabalho (art. 227, II).
A Lei n.º 7.853 de 24 de outubro de 1989, estabeleceu o apoio à pessoa portadora de deficiência, sua integração social, a tutela jurisdicional de interesses coletivos e difusos dessas pessoas, disciplinou a atuação do Ministério Público e definiu crimes. Objetivou esta lei, assegurar as pessoas portadoras de deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos, principalmente no que diz respeito à saúde, educação, ao trabalho, lazer, à previdência social, ao amparo à infância e maternidade.
A partir desta Lei, foi atribuída, de forma específica ao Ministério Público à defesa dos interesses das pessoas portadoras de deficiência, com a possibilidade de se ingressar com ação civil pública e instaurar inquérito civil. Também foi especificado os crimes quanto ao preconceito em relação ao portador de deficiência e reestruturado a Coordenadoria Nacional para a Pessoa Portadora de Deficiência - CORDE.
Significou um avanço em termos legislativos, posto que possibilitou o ingresso de medidas judiciais para garantir a efetividade dos direitos fundamentais ao portador de deficiência, além da possibilidade de responsabilizar criminalmente os infratores.
O Decreto n.º 3.298 de 20 de dezembro de 1999, regulamentou a lei supra citada, detalhando as ações e diretrizes referentes ao portador de deficiência, especificamente em relação a saúde, acesso à educação, habilitação e reabilitação profissional, acesso ao trabalho, cultura, desporto, turismo e lazer. Na verdade, buscou tornar mais efetivo aqueles direitos que já tinham sido contemplados na lei n.º 7.853/89.
Finalmente, para regulamentar os critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, foi editada a lei n.º 10.098 de 19 de dezembro de 2000, que tratou da eliminação das barreiras arquitetônicas para a inclusão do portador de deficiência. Assim, trata dos elementos de urbanização, com os mobiliários urbanos, estacionamentos públicos, acessibilidade dos edifícios públicos e os de uso privado, transporte coletivo e da acessibilidade nos sistemas de comunicação.
A par destas leis, outras que não se referem especificamente a pessoa portadora de deficiência também tratam da questão da inclusão do deficiente, como por exemplo o Estatuto da Criança e do Adolescente, no que se refere a educação (art. 54, III) ou a lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394/96 – Capítulo V, artigos 58 a 60).
Todas estas lei procuram dar cumprimento ao que estabelece a Constituição como fundamento do Estado Democrático de Direito, ou seja a cidadania e a dignidade da pessoa humana (art., 1º, II e III), que representa o desejo de toda pessoa portadora de deficiência: ser cidadão com dignidade.
03. O MINISTÉRIO PÚBLICO E A PESSOA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA.
Da mesma forma que o portador de deficiência foi ignorado na nossa legislação constitucional, que somente veio a contemplá-lo com a emenda n.º 01 à Constituição de 1967, também verificou-se tal situação junto ao Ministério Público, até certo ponto justificável, em razão de sua vocação penal. No entanto, a partir do momento em que o Ministério Público foi ganhando novas atribuições, principalmente na área dos direitos difusos e coletivos, surgiu a preocupação com a pessoa portadora de deficiência, mesmo diante da ausência de mecanismo legal de proteção.
Tanto é verdade, que em artigo intitulado "O Deficiente e o Ministério Público", o eminente doutrinador Hugo Nigro Mazzilli Revista Justitia. São Paulo: Ministério Público, janeiro/março de 1988, vol. 141, pág. 55-68., no início de 1988, já defendia a atuação do Promotor de Justiça nesta área, como decorrência do princípio da igualdade, tendo como fundamento legal para a intervenção o disposto no artigo 82, III do Código de Processo Civil, que tratava do "zelo de um interesse público evidenciado pela qualidade de uma das partes", bem como a criação de uma Coordenadoria, nos moldes das existentes na época para o consumidor, meio ambiente, acidentes do trabalho.
Esclarece o citado autor:
"No campo interventivo, assim, é perfeitamente compatível que o Ministério Público, ampliando seu campo de atuação dentro do próprio ordenamento jurídico ainda em vigor, possa encaminhar-se para a atuação protetiva das pessoas que ostentem qualquer forma de grave deficiência, seja intelectual, motora, sensorial, funcional, orgânica, de personalidade, social ou meramente decorrente de fatores outros, como a idade avançada. A tanto o legitima o artigo 82, inciso III do CPC.
No campo da propositura da ação civil pública, além das já tradicionais iniciativas nessa área, como ocorre na interdição e noutras medidas de proteção a incapazes, a recente Lei n.º 7347 de 24 de julho de 1985 conferiu ao Ministério Público legitimidade para propor ação civil pública na defesa de alguns interesses difusos. Ora, dentro da interpretação mais larga que temos preconizado, é desejável que o conceito de consumidor seja visto de forma abrangente, para alcançar hipóteses como a de iniciativa de ações visando à defesa dos direitos dos deficientes físicos na aplicação de leis como as que dispõem sobre lugares especiais em ônibus, aquisição de veículos adaptados, acesso ao ensino, etc.".
Esta interpretação se mostrava necessária, uma vez que "o veto presidencial ao artigo 1º, inciso IV da lei n.º 7.347/85, retirou do corpo legal a norma de extensão que daria ao Ministério Público legitimidade para tutelar "outros interesses difusos", entre eles os das pessoas portadoras de deficiência". BENJAMIN, Antonio Hernan de Vasconcellos. A tutela das pessoas portadoras de deficiência pelo Ministério Público. In: FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin (Org.) Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência. São Paulo. Max Limonad, 1997, pág. 35. Somente com o advento da Constituição de 1988, é que foi possível a interpretação inicial que se pretendia, posto que no artigo 129, III, incluiu, entre as atribuições do Ministério Público, a defesa de outros interesses difusos e coletivos.
Assim, a legitimidade do Ministério Público na defesa dos direitos das pessoas portadoras de deficiência ganhou novo referencial com a Constituição de 1988, sendo que a Lei n.º 7.853/89 acabou por consolidar tal legitimidade, estabelecendo as regras para ação civil pública e inquérito civil nesta área O Ministério Público do Estado de São Paulo tratou de se organizar para possibilitar o efetivo cumprimento das novas atribuições, sendo que em 05 de março de 1990, foi editado o ato n.º 01/90 da Procuradoria Geral de Justiça, criando o Centro Operacional das Promotorias de Justiça das Pessoas Portadoras de Deficiência, com a designação de um Promotor de Justiça, em cada comarca do Estado, responsável pelo trabalho, nesta área, a ser desenvolvido junto a comunidade..
04. A ATUAÇÃO DO PROMOTOR DE JUSTIÇA NA DEFESA DO PORTADOR DE DEFICIÊNCIA.
Tendo a legislação lhe conferido legitimidade para atuar junto a pessoa portadora de deficiência, cumpre verificar como deve ser desenvolvido este trabalho.
A atuação do Promotor de Justiça se resume na busca da inclusão do portador de deficiência na sua comunidade A atuação do Promotor de Justiça no Estado de São Paulo está regulamentada nos artigos 494 e 495 do Ato n.º 168/98, de 21 de dezembro de 1998, da Procuradoria Geral de Justiça e Corregedoria Geral do Ministério Público, que instituiu o "Manual de Atuação Funcional".. Esta inclusão deve ser:
a) inclusão econômica – proporcionando a garantia do trabalho a pessoa portadora de deficiente com habilitação e reabilitação (ex. fiscalizando a reserva de vagas aos portadores de deficientes, tanto na realização de concurso público como no preenchimento das vagas junto as empresas)
b) inclusão social – diminuindo o preconceito em relação ao portador de deficiência, com a plena integração na sociedade, inclusive na área da cultura e lazer (ex. reserva de vagas nos estacionamentos públicos, transporte coletivo adaptado).
c) inclusão educacional – que vem a ser o processo de inclusão dos portadores de deficiência na rede comum de ensino em todos os seus graus (escola inclusiva).
d) inclusão ambiental no sentido mais amplo do termo – que representa a queda das barreiras arquitetônicas.
e) inclusão na saúde com um trabalho de prevenção, reabilitação e acesso ao estabelecimentos de atenção a saúde
Em síntese, o trabalho do Promotor de Justiça deve ser no sentido de buscar a efetividade dos direitos fundamentais consignados na constituição e garantidos pela legislação ordinária, com vista a aplicação do princípio da igualdade, como expressão máxima da cidadania e dignidade da pessoa humana.
A inclusão em análise não pode ser aplicada de forma isolada, ou seja, a inclusão escolar sem a preocupação com a inclusão ambiental ou econômica. Ao contrário, o trabalho deve ser articulado e realizado em conjunto. Com efeito. De nada adianta garantir a vaga na escola ao portadora de deficiência, se esta escola não se encontra devidamente adaptada à recebê-lo. A mesma situação se verifica com a inclusão econômica, ou no lazer. Pode-se garantir o trabalho e até o lazer, mas se o portador de deficiência não tiver meios para se deslocar até estes locais, restará incompleta a sua inclusão.
Verifica-se pois que a inclusão não pode ser setorial e sim global, residindo nesta questão o principal desafio do Promotor de Justiça.
Por outro lado, deve o Promotor de Justiça lançar um olhar multifocal para os problemas enfrentados pelos portadores de deficiência. Isto porque, com uma sociedade construída para a exclusão do deficiente, torna-se necessário travar uma luta incessante, no sentido de se buscar a sua restruturação, trabalhando com as situações já existentes, mediante ações reparadoras. Em outras palavras, na questão da inclusão ambiental, buscar a eliminação das barreiras arquitetônicas junto aos prédios já construídos.
Deve também se preocupar com a situação presente, no sentido de não permitir que o desenvolvimento da sociedade, continue a excluir a pessoa portadora de deficiência. Assim, na questão da inclusão ambiental, trabalhar no sentido de garantir que a construção de novos prédios, já venham adaptados ao deficiente.
A idéia de exclusão está intimamente ligada à pessoa portadora de deficiência, sendo que as leis que tratam da questão, visam possibilitar a inclusão do deficiente.
Conferindo ao Ministério Público a tarefa de proporcionar, facilitar e agir no sentido de garantir esta inclusão, concluí-se que a sua inércia também pode configurar uma outra forma de exclusão desta parcela da comunidade. Daí porque, a atuação do Promotor de Justiça nesta área é de extrema importância, para o restabelecimento de uma sociedade mais justa, igualitária e inclusiva. A atuação está centrada no Promotor de Justiça da Pessoa Portadora de Deficiência, mas é compartilhada com os Promotores do Meio Ambiente (quando buscam garantir o saneamento básico que é uma forma de prevenção primária - promoção da saúde - da deficiência); da Infância e da Juventude (atuando nas questões relacionadas a educação, exame médicos obrigatórios, vacinação, trabalho protegido, prótese, etc.) e da Cidadania (quanto a aplicação de recursos na área da saúde).
05. CONSIDERAÇÕES FINAIS.
Numa sociedade de perfeitos ou do homem ideal, a pessoa portadora de deficiência é ignorada e excluída, restando confinada na própria família ou em uma instituição, como tradução da expressão "o que os olhos não vêem o coração não sente".
A reversão deste quadro é lenta, mas possível diante de uma atuação eficiente do Promotor de Justiça. Para tanto, mister se faz compreender que:
a) a ausência de sensibilidade, não significa a ausência de sentimentos;
b) a incapacidade de movimentos, não significa uma pessoa incapaz;
c) a deficiência de um sentido, não quer significar uma vida sem sentidos OKAMOTO, Gary A. Medicina Física e Reabilitação. São Paulo: Manoele, 1990, pág. 102. .
Uma sociedade mais justa e igualitária, pressupõe a inclusão da pessoa portadora de deficiência. Atualmente, a "situação do deficiente numa sociedade urbana, pela forma como são desatendidas suas necessidades mais elementares, o transforma em vítima social" SÉGUIN, Elida. Justiça é diferente de direito. A vitimização do portador de necessidades especiais. In: ROBERT, Cinthia (org.). O Direito do deficiente. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, pág. 26..
O Ministério Público, como instituição encarregada de zelar pela efetividade dos direitos consagrados à pessoa portadora de deficiência, assume, dentro deste contexto, o papel de agente transformador, para tornar a sociedade inclusiva, elevando o deficiente à condição de cidadão.
A história da humanidade revela, desde os tempos mais remotos, a existência de pessoas portadoras de deficiência, com relatos sobre suas dificuldades na vida cotidiana. A Bíblia, dá vários exemplos de tais situações, como a deficiência da fala de Moisés (Êxodo, 4:10) ou da visão e física do apóstolo Paulo (Coríntios, cap. 12:7). Na era clássica, esclarece Aurea Ribeiro O cidadão portador de deficiência. In: ROBERT, Cinthia (org.). O Direito do Deficiente. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, pág. 81., "Homero – aquele a quem Platão denominou na República, o maior de todos os poetas - deixou lavrado em seus versos, a tarefa estratégica legada ao deus Hefesto, que era coxo, ou seja, portador de deficiência física, o mesmo ocorrendo com Platão, que tinha uma desproporcionalidade física de seus ombros e fontes. A estas pessoas somam-se inúmeras outras, como Ludwig Van Beethoven, ou o Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, que assim ficou conhecido devido a deficiência que portava.
A trajetória histórica, revela que a pessoa portadora de deficiência sempre foi marginalizada, vivendo num verdadeiro apartheid social, sendo vítima da própria deficiência e da exclusão proporcionada pela sociedade, dita perfeita ou de homens fictícios.
Esta situação é menos gritante nos países que experimentaram os horrores de uma guerra, com a presença de mutilados e portanto deficientes, acarretando maior sensibilização e mobilização da sociedade para atender aos seus direitos, já que assim ficaram para defender a pátria.
Nos países que não passaram por esta experiência, como o Brasil, o deficiente ainda é ignorado, sendo certo que a evolução da sociedade não foi suficiente para afastar a exclusão e as dificuldades experimentadas, sendo necessário estabelecer por meio de lei, regras que pudessem buscar a igualização entre as pessoas, portadoras de deficiência ou não.
Estas normas, por si só, também não garantiram a efetividade da igualdade, diante da nossa cultura de sociedade perfeita. Assim, os portadores de deficiência continuaram marginalizados e excluídos do contexto social. Foi necessário estabelecer mecanismos assecuratórios para garantir a cidadania da pessoa portadora de deficiência, com a previsão de ações judiciais e instituição que assumisse a defesa deste segmento da sociedade.
Neste contexto, surge o Ministério Público como instituição designada para fazer valer os interesses dos portadores de deficiência, visando garantir a sua cidadania, inclusão social e dignidade.
As leis elaboradas passaram a dar respaldo a atuação Ministerial, possibilitando o início de uma verdadeira revolução para retirar o portador de deficiência da condição de marginalizado e excluído, elevando-o à cidadão com dignidade e respeito.
02. PROTEÇÃO LEGAL DO PORTADOR DE DEFICIÊNCIA.
São inúmeras as leis que buscam regulamentar os direitos da pessoa portadora de deficiência. Tais leis não se apresentam como um todo harmonioso, dificultando a sua aplicação, uma vez que regulamentam a matéria leis esparsas, na esfera federal, estadual e municipal, além de decretos regulamentares, portarias e resoluções específicas para cada tipo de deficiência.
O certo é que, dentro deste complexo de proteção legal, merece análise o contido nas Constituições, bem como nas leis n.º 7.853 de 24 de outubro de 1989, Decreto n.º 3.298 de 20 de dezembro de 1999 e a Lei n.º 10.098 de 19 de dezembro de 2000, que de forma mais efetiva tratam dos direitos dos portadores de deficiência e sua inclusão.
Quanto as Constituições, esclarece o Prof. Luiz Alberto David Araújo Proteção constitucional das pessoas portadoras de deficiência. Brasília: Coordenadoria Nacional para Integração da pessoa portadora de deficiência, 1994, pág. 66-73., que somente com a Emenda n.º 01 à Constituição de 1967, é que surgiu uma vaga referência a pessoa portadora de deficiência, quando tratou da "educação dos excepcionais".
Posteriormente, com a Emenda n.º 12, de 17 de outubro de 1978 à Constituição de 1967, novo avanço ocorreu para os portadores de deficiência, uma vez que foi estabelecido que:
Artigo único: É assegurado aos deficientes a melhoria de sua condição social e econômica especialmente mediante:
I - educação especial e gratuita;
II – assistência, reabilitação e reinserção na vida econômica e social do Pais;
III – proibição de discriminação, inclusive quanto à admissão ao trabalho ou ao serviço público e a salários;
IV – possibilidade de acesso a edifícios e logradouros públicos.
A partir daí, a inovação mais significativa ocorreu com a atual Constituição de 1988. Ela foi pródiga ao tratar da pessoa portadora de deficiência, estabelecendo não somente a regra geral relativa ao princípio da igualdade (art. 5º, "caput"), mas também:
a) a competência comum da União, Estado, Distrito Federal e Município para cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência (art. 23, II).
b) a competência concorrente para legislar visando a proteção e integração do portador de deficiência (art. 24, XIV).
c) a proteção ao trabalho, proibindo qualquer discriminação no tocante ao salário e admissão do portador de deficiência (art. 7º, XXXI) e a reserva de vagas para cargos públicos (art. 37, VIII);
d) a assistência social – habilitação, reabilitação e benefício previdenciário (art. 203, IV e V),
e) a educação – atendimento especializado, prefencialmente na rede regular de ensino (art. 208, III),
f) a eliminação das barreiras arquitetônicas, adaptação de logradouros públicos, edifícios, veículos de transportes coletivos. (art. 227, II, parágrafo 2º).
g) preocupação com a criança e adolescente portadores de deficiência, com criação de programas de prevenção e atendimento especializado, além de treinamento para o trabalho (art. 227, II).
A Lei n.º 7.853 de 24 de outubro de 1989, estabeleceu o apoio à pessoa portadora de deficiência, sua integração social, a tutela jurisdicional de interesses coletivos e difusos dessas pessoas, disciplinou a atuação do Ministério Público e definiu crimes. Objetivou esta lei, assegurar as pessoas portadoras de deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos, principalmente no que diz respeito à saúde, educação, ao trabalho, lazer, à previdência social, ao amparo à infância e maternidade.
A partir desta Lei, foi atribuída, de forma específica ao Ministério Público à defesa dos interesses das pessoas portadoras de deficiência, com a possibilidade de se ingressar com ação civil pública e instaurar inquérito civil. Também foi especificado os crimes quanto ao preconceito em relação ao portador de deficiência e reestruturado a Coordenadoria Nacional para a Pessoa Portadora de Deficiência - CORDE.
Significou um avanço em termos legislativos, posto que possibilitou o ingresso de medidas judiciais para garantir a efetividade dos direitos fundamentais ao portador de deficiência, além da possibilidade de responsabilizar criminalmente os infratores.
O Decreto n.º 3.298 de 20 de dezembro de 1999, regulamentou a lei supra citada, detalhando as ações e diretrizes referentes ao portador de deficiência, especificamente em relação a saúde, acesso à educação, habilitação e reabilitação profissional, acesso ao trabalho, cultura, desporto, turismo e lazer. Na verdade, buscou tornar mais efetivo aqueles direitos que já tinham sido contemplados na lei n.º 7.853/89.
Finalmente, para regulamentar os critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, foi editada a lei n.º 10.098 de 19 de dezembro de 2000, que tratou da eliminação das barreiras arquitetônicas para a inclusão do portador de deficiência. Assim, trata dos elementos de urbanização, com os mobiliários urbanos, estacionamentos públicos, acessibilidade dos edifícios públicos e os de uso privado, transporte coletivo e da acessibilidade nos sistemas de comunicação.
A par destas leis, outras que não se referem especificamente a pessoa portadora de deficiência também tratam da questão da inclusão do deficiente, como por exemplo o Estatuto da Criança e do Adolescente, no que se refere a educação (art. 54, III) ou a lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394/96 – Capítulo V, artigos 58 a 60).
Todas estas lei procuram dar cumprimento ao que estabelece a Constituição como fundamento do Estado Democrático de Direito, ou seja a cidadania e a dignidade da pessoa humana (art., 1º, II e III), que representa o desejo de toda pessoa portadora de deficiência: ser cidadão com dignidade.
03. O MINISTÉRIO PÚBLICO E A PESSOA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA.
Da mesma forma que o portador de deficiência foi ignorado na nossa legislação constitucional, que somente veio a contemplá-lo com a emenda n.º 01 à Constituição de 1967, também verificou-se tal situação junto ao Ministério Público, até certo ponto justificável, em razão de sua vocação penal. No entanto, a partir do momento em que o Ministério Público foi ganhando novas atribuições, principalmente na área dos direitos difusos e coletivos, surgiu a preocupação com a pessoa portadora de deficiência, mesmo diante da ausência de mecanismo legal de proteção.
Tanto é verdade, que em artigo intitulado "O Deficiente e o Ministério Público", o eminente doutrinador Hugo Nigro Mazzilli Revista Justitia. São Paulo: Ministério Público, janeiro/março de 1988, vol. 141, pág. 55-68., no início de 1988, já defendia a atuação do Promotor de Justiça nesta área, como decorrência do princípio da igualdade, tendo como fundamento legal para a intervenção o disposto no artigo 82, III do Código de Processo Civil, que tratava do "zelo de um interesse público evidenciado pela qualidade de uma das partes", bem como a criação de uma Coordenadoria, nos moldes das existentes na época para o consumidor, meio ambiente, acidentes do trabalho.
Esclarece o citado autor:
"No campo interventivo, assim, é perfeitamente compatível que o Ministério Público, ampliando seu campo de atuação dentro do próprio ordenamento jurídico ainda em vigor, possa encaminhar-se para a atuação protetiva das pessoas que ostentem qualquer forma de grave deficiência, seja intelectual, motora, sensorial, funcional, orgânica, de personalidade, social ou meramente decorrente de fatores outros, como a idade avançada. A tanto o legitima o artigo 82, inciso III do CPC.
No campo da propositura da ação civil pública, além das já tradicionais iniciativas nessa área, como ocorre na interdição e noutras medidas de proteção a incapazes, a recente Lei n.º 7347 de 24 de julho de 1985 conferiu ao Ministério Público legitimidade para propor ação civil pública na defesa de alguns interesses difusos. Ora, dentro da interpretação mais larga que temos preconizado, é desejável que o conceito de consumidor seja visto de forma abrangente, para alcançar hipóteses como a de iniciativa de ações visando à defesa dos direitos dos deficientes físicos na aplicação de leis como as que dispõem sobre lugares especiais em ônibus, aquisição de veículos adaptados, acesso ao ensino, etc.".
Esta interpretação se mostrava necessária, uma vez que "o veto presidencial ao artigo 1º, inciso IV da lei n.º 7.347/85, retirou do corpo legal a norma de extensão que daria ao Ministério Público legitimidade para tutelar "outros interesses difusos", entre eles os das pessoas portadoras de deficiência". BENJAMIN, Antonio Hernan de Vasconcellos. A tutela das pessoas portadoras de deficiência pelo Ministério Público. In: FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin (Org.) Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência. São Paulo. Max Limonad, 1997, pág. 35. Somente com o advento da Constituição de 1988, é que foi possível a interpretação inicial que se pretendia, posto que no artigo 129, III, incluiu, entre as atribuições do Ministério Público, a defesa de outros interesses difusos e coletivos.
Assim, a legitimidade do Ministério Público na defesa dos direitos das pessoas portadoras de deficiência ganhou novo referencial com a Constituição de 1988, sendo que a Lei n.º 7.853/89 acabou por consolidar tal legitimidade, estabelecendo as regras para ação civil pública e inquérito civil nesta área O Ministério Público do Estado de São Paulo tratou de se organizar para possibilitar o efetivo cumprimento das novas atribuições, sendo que em 05 de março de 1990, foi editado o ato n.º 01/90 da Procuradoria Geral de Justiça, criando o Centro Operacional das Promotorias de Justiça das Pessoas Portadoras de Deficiência, com a designação de um Promotor de Justiça, em cada comarca do Estado, responsável pelo trabalho, nesta área, a ser desenvolvido junto a comunidade..
04. A ATUAÇÃO DO PROMOTOR DE JUSTIÇA NA DEFESA DO PORTADOR DE DEFICIÊNCIA.
Tendo a legislação lhe conferido legitimidade para atuar junto a pessoa portadora de deficiência, cumpre verificar como deve ser desenvolvido este trabalho.
A atuação do Promotor de Justiça se resume na busca da inclusão do portador de deficiência na sua comunidade A atuação do Promotor de Justiça no Estado de São Paulo está regulamentada nos artigos 494 e 495 do Ato n.º 168/98, de 21 de dezembro de 1998, da Procuradoria Geral de Justiça e Corregedoria Geral do Ministério Público, que instituiu o "Manual de Atuação Funcional".. Esta inclusão deve ser:
a) inclusão econômica – proporcionando a garantia do trabalho a pessoa portadora de deficiente com habilitação e reabilitação (ex. fiscalizando a reserva de vagas aos portadores de deficientes, tanto na realização de concurso público como no preenchimento das vagas junto as empresas)
b) inclusão social – diminuindo o preconceito em relação ao portador de deficiência, com a plena integração na sociedade, inclusive na área da cultura e lazer (ex. reserva de vagas nos estacionamentos públicos, transporte coletivo adaptado).
c) inclusão educacional – que vem a ser o processo de inclusão dos portadores de deficiência na rede comum de ensino em todos os seus graus (escola inclusiva).
d) inclusão ambiental no sentido mais amplo do termo – que representa a queda das barreiras arquitetônicas.
e) inclusão na saúde com um trabalho de prevenção, reabilitação e acesso ao estabelecimentos de atenção a saúde
Em síntese, o trabalho do Promotor de Justiça deve ser no sentido de buscar a efetividade dos direitos fundamentais consignados na constituição e garantidos pela legislação ordinária, com vista a aplicação do princípio da igualdade, como expressão máxima da cidadania e dignidade da pessoa humana.
A inclusão em análise não pode ser aplicada de forma isolada, ou seja, a inclusão escolar sem a preocupação com a inclusão ambiental ou econômica. Ao contrário, o trabalho deve ser articulado e realizado em conjunto. Com efeito. De nada adianta garantir a vaga na escola ao portadora de deficiência, se esta escola não se encontra devidamente adaptada à recebê-lo. A mesma situação se verifica com a inclusão econômica, ou no lazer. Pode-se garantir o trabalho e até o lazer, mas se o portador de deficiência não tiver meios para se deslocar até estes locais, restará incompleta a sua inclusão.
Verifica-se pois que a inclusão não pode ser setorial e sim global, residindo nesta questão o principal desafio do Promotor de Justiça.
Por outro lado, deve o Promotor de Justiça lançar um olhar multifocal para os problemas enfrentados pelos portadores de deficiência. Isto porque, com uma sociedade construída para a exclusão do deficiente, torna-se necessário travar uma luta incessante, no sentido de se buscar a sua restruturação, trabalhando com as situações já existentes, mediante ações reparadoras. Em outras palavras, na questão da inclusão ambiental, buscar a eliminação das barreiras arquitetônicas junto aos prédios já construídos.
Deve também se preocupar com a situação presente, no sentido de não permitir que o desenvolvimento da sociedade, continue a excluir a pessoa portadora de deficiência. Assim, na questão da inclusão ambiental, trabalhar no sentido de garantir que a construção de novos prédios, já venham adaptados ao deficiente.
A idéia de exclusão está intimamente ligada à pessoa portadora de deficiência, sendo que as leis que tratam da questão, visam possibilitar a inclusão do deficiente.
Conferindo ao Ministério Público a tarefa de proporcionar, facilitar e agir no sentido de garantir esta inclusão, concluí-se que a sua inércia também pode configurar uma outra forma de exclusão desta parcela da comunidade. Daí porque, a atuação do Promotor de Justiça nesta área é de extrema importância, para o restabelecimento de uma sociedade mais justa, igualitária e inclusiva. A atuação está centrada no Promotor de Justiça da Pessoa Portadora de Deficiência, mas é compartilhada com os Promotores do Meio Ambiente (quando buscam garantir o saneamento básico que é uma forma de prevenção primária - promoção da saúde - da deficiência); da Infância e da Juventude (atuando nas questões relacionadas a educação, exame médicos obrigatórios, vacinação, trabalho protegido, prótese, etc.) e da Cidadania (quanto a aplicação de recursos na área da saúde).
05. CONSIDERAÇÕES FINAIS.
Numa sociedade de perfeitos ou do homem ideal, a pessoa portadora de deficiência é ignorada e excluída, restando confinada na própria família ou em uma instituição, como tradução da expressão "o que os olhos não vêem o coração não sente".
A reversão deste quadro é lenta, mas possível diante de uma atuação eficiente do Promotor de Justiça. Para tanto, mister se faz compreender que:
a) a ausência de sensibilidade, não significa a ausência de sentimentos;
b) a incapacidade de movimentos, não significa uma pessoa incapaz;
c) a deficiência de um sentido, não quer significar uma vida sem sentidos OKAMOTO, Gary A. Medicina Física e Reabilitação. São Paulo: Manoele, 1990, pág. 102. .
Uma sociedade mais justa e igualitária, pressupõe a inclusão da pessoa portadora de deficiência. Atualmente, a "situação do deficiente numa sociedade urbana, pela forma como são desatendidas suas necessidades mais elementares, o transforma em vítima social" SÉGUIN, Elida. Justiça é diferente de direito. A vitimização do portador de necessidades especiais. In: ROBERT, Cinthia (org.). O Direito do deficiente. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, pág. 26..
O Ministério Público, como instituição encarregada de zelar pela efetividade dos direitos consagrados à pessoa portadora de deficiência, assume, dentro deste contexto, o papel de agente transformador, para tornar a sociedade inclusiva, elevando o deficiente à condição de cidadão.
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