segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Deficientes assumem publicamente sua vida sexual.

Deficientes assumem publicamente sua vida sexual.

Mensagempor Loureiro » 16 Oct 2008 22:11
Deficientes assumem publicamente sua vida sexual.
Mesmo que as pupilas de um cego sejam feitas de vidro, é difícil enxergar algum brilho em seus olhares. Também não se imagina um deficiente mental apaixonado, ainda que sua cabeça esteja sempre nas nuvens. E nunca se dirá que o corpo de um tetraplégico é escultural, mesmo que seja imóvel como uma estátua de mármore. No imaginário da sociedade, a cama do deficiente é sempre um lugar de repouso, leito de tratamento que uma pobre alma necessita para enfrentar seus males. Nunca é espaço de diversão, templo de impulsos lúbricos onde os lençóis desarrumados são a memória recente de que ali houve noites bem melhores.
Se sexo ainda é tabu, imagine quando ocorre entre eles. Eles, que para a ciência, são deficientes mentais, visuais, auditivos, físicos. Eles, que para os politicamente corretos, são portadores de necessidades especiais. Eles que, para o senso comum, são cegos, surdos, dementes, aleijados. Eles, que são sempre "eles", pronome na terceira pessoa que os torna ainda mais párias. Apesar de alguns avanços, a sexualidade dos deficientes ainda é pouco discutida em escolas, famílias, hospitais, na imprensa, nas pesquisas das universidades, e mesmo nas artes. Não é simples preconceito. Parece mais uma cegueira coletiva - o mundo ainda não enxerga que muitos deficientes também se apaixonam, têm desejo e podem, sim, ter vida sexual.

Quando Jurânia da Silva ficou grávida de seu marido, em vez de ouvir os tradicionais "Parabéns!" ou "É menino ou menina?" tão ditos às futuras mamães, ela escutou um outro tipo de comentário. "Quando viam a gravidez, as pessoas diziam: coitadinha, quem fez isso com você?". Vítima de uma poliomielite que atrofiou seus membros inferiores logo na infância, Jurânia tem como pernas mais ágeis duas muletas de metal. Por conta disso, ainda criança se viu negada no sexo e na humanidade. Sua mãe teve quatro filhas, mas só lembrava de três na contagem. "Ela sempre dizia: tenho três filhas mulheres e uma aleijada", lembra. Mas Jurânia nunca viu como maldade. "Sei que ela não fazia por mal. Era uma pessoa da roça, sem entendimento". Contrariando as expectativas da família, Jurânia estudou até a escola técnica, casou-se, teve dois filhos. Hoje, é apaixonada por seu marido, também deficiente. E ela garante que, quando o assunto é sexo, tudo vai muito bem, obrigada.

Mas o mundo segue a passos mais lentos que as muletas de Jurânia. É claro que já não se faz como em Esparta, cidade da guerra, onde os bebês com qualquer tipo de deficiência eram sacrificados, atirados em precipícios ou, na melhor das hipóteses, abandonados, porque supostamente não estariam preparados para a vida nem para a luta. Os esquimós também abandonaram um hábito estranho; em outros tempos, eles deixavam os ursos brancos devorar os deficientes e os velhos. O urso branco era tido como sagrado, e a população ártica acreditava que, alimentando-o com os velhos e deficientes, o animal teria uma pele de melhor qualidade.

Hoje, tanto os banquetes humanos na região ártica como os precipícios de Esparta são apenas mitos distantes e macabros. Mas persistem outras formas sutis de isolamento. "A sexualidade do deficiente ainda não é plenamente aceita na sociedade", diz Lília Moreira, geneticista e pesquisadora da Ufba. Ela explica que é mais freqüente os deficientes namorarem com pessoas também portadoras de deficiência, os quais conhecem nas escolas especiais ou nas associações comunitárias que freqüentam.

Essa foi a história de Conceição do Carmo, 45 anos, deficiente visual. Na Associação Baiana dos Cegos (ABC), Conceição conheceu seu atual companheiro, o aposentado Jamilton Moreira, 51 anos, que também é cego. "Nos aproximamos mais pela afinidade que por atração", diz Jamilton. Melhor assim, porque Conceição não é vaidosa. Ela tem lá seus motivos; ainda guarda na mente a razão pela qual passou a não gostar de maquiagem. "Quando eu colocava batom, o pessoal dizia: pra que batom, se nenhum homem vai olhar pra você?". Era como se a cegueira de Conceição contaminasse os olhos sãos de todos os homens.

Conceição é uma das 24.600.256 pessoas no país com algum grau de deficiência. Estipulado pelo IBGE, o número corresponde a cerca de 14,4% da população do Brasil. A pesquisa abrangeu desde tetraplegias até mesmo a amputação do dedo polegar. O critério mostra como é difícil definir, precisamente, o que é deficiência. Pelo Decreto 3298/99, que regulamenta a Lei 7853/99 e dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, "deficiência é toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano". Mas o que é ser normal?

Pelo conceito médico, a psicóloga Mara Gabrilli é tetraplégica. Mas ela não se acha anormal só porque não movimenta o corpo do pescoço para baixo. "Claro que meu corpo é diferente, mas acho ele bonito". Em setembro de 2000, Mara foi fotografada para a revista Trip, e enfeitou várias páginas da publicação com um ensaio para lá de sensual. Tudo começou quando uma amiga, funcionária da Trip, sugeriu que Mara posasse para a capa. "No começo, achei que não ia rolar. Fiquei pensando: esse povo tá viajando!" O ensaio acabou sendo publicado com o sugestivo título Curvas perigosas, um trocadilho que fazia alusão ao acidente de carro que a deixou sem os movimentos. Ela não achou o título de mal gosto. Muito pelo contrário. "Adorei. Havia sugerido Essa mulher é uma parada!".

Ao longo da reportagem, o leitor saberá mais sobre essa e outras histórias. Histórias como a de Joana Virgínia, que causou um estardalhaço quando engravidou dentro do manicômio, em 1877; histórias anônimas e escondidas entre as cobertas de preconceito da sociedade. Nessa matéria, os surdos e mudos ficaram de fora, porque, após algumas entrevistas, pôde-se perceber que a falta de audição não interfere, de modo tão considerável, na questão da sexualidade.

Vamos, então, a todos os outros enlaces. Mas antes, é preciso lembrar que, sejam quem for seus personagens, a sexualidade humana é sempre um tema complexo, fascinante, inesgotável. Vai desde um olhar malicioso até uma infinidade de fetiches, posições, fantasias e perversões. No mundo, não há assunto mais farto e apetitoso que os prazeres da carne. Que o digam os escritores Alfred de Musset, Bocage e Marquês de Sade. E também Augusto dos Anjos, que flutuou em devaneios pelos seios de virgem; Machado de Assis, que deixou um pouco de lado as ironias para descrever o sutil movimento de mãos e olhares. Que o leitor não se engane; há sexo desde o romantismo ingênuo do remoto Petrarca às cartas picantes de Jaymes Joyce a Nora Barnacle. Mas há algo universal dentre tantas possibilidades. Quando se apagam as luzes, o coração dispara, os olhos se perdem, o pensamento vai longe. Mesmo que os olhos sejam de vidro, as cabeças estejam eternamente nas nuvens e os corpos sejam imóveis como estátuas de mármore.



Fonte: Vida e Saúde - Terra.

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